O escritor
William Somerset Maugham escreveu um livro chamado A Servidão Humana, cuja
história gira em torno de uma das figuras mais desconcertantes que a humanidade
já produziu. É um sujeito chamado Philip, cuja figura é a cópia fiel da
humanidade. Todo tipo de sofrimento que se possa imaginar, e até mesmo
inimagináveis acometeram aquela representação de uma desgraçada figura criada
pela mente privilegiada do escritor para nos mostrar não haver limite para a
degradação moral a que pode chegar um ser humano cujo cérebro se encontra
dominado por força negativa tão grande que o faz convencer ao resto do corpo de
que faz parte de ser ele tão vil a ponto de ser incapaz de um gesto de nobreza.
Causa mal estar a quem pensa sobre as coisas da vida ser identificado pelo
mesmo substantivo “homem” que também serve para identificar figuras como Philip
ou a maioria absoluta das pessoas que compõem a humanidade em sua degradação
moral capaz de deixar Philip e a humanidade ainda mais baixos do que a situação
de quem se encontra de quatro.
O pobre Philip
era complexado por ser portador de um defeito no pé que o fazia mancar. Tinha
uma personalidade deformada pela criação num ambiente de grande religiosidade,
onde certamente lhe teria sido inoculada a cultura da submissão ao sofrimento,
tarefa ingrata de toda religião. O sofrimento deve ser encarado com rejeição,
jamais acolhido com satisfação. Os sofrimentos inevitáveis, estes serão mais
facilmente suportáveis se forem entendidos como obras do acaso, razão pela qual
são inevitáveis. Esta forma simples e despida de fantasias dá maior
tranquilidade para encarar os sofrimentos inevitáveis a quem pensa sobre a vida.
Ao contrário, quem vive apenas em função de dinheiro e futilidades, como nada
sabem sobre as outras coisas, mortificam-se infinitamente mais ante os
infortúnios que a natureza nos impõe.
O escritor limitou à desconcertante figura do
infeliz Philip, seu personagem, a servidão que submete toda a humanidade. Cada
ser humano é um Philip na realidade. Se os ricos são servos da necessidade de
acumular riqueza e da preocupação em guardá-la a salvo de quem dela precisa,
por um lado, por outro lado também se encontram escravizados à necessidade de
fazer de conta que não sabem do sofrimento dos pobres que fazem suas riquezas, mas que são obrigados a conviver com a situação da
garotinha que chegou ao hospital com um braço quebrado, vinte e quatro horas
depois ainda se encontrava no mesmo lugar, chorando, com o bracinho já inchado
e na mesma espera, enquanto em outro hospital, outra menina que foi baleada em tiroteio
permaneceu durante oito dias à espera por socorro até morrer num abandono
cruel. Os ricos sabem, mas precisam ser indiferentes a estas coisas que atrapalham os negócios. Os pobres não sabem,
mas precisam saber que a situação de sofrimento daquelas menininhas se deve por
falta das montanhas de dinheiro escondidas nos infernos fiscais, provenientes
de roubo de todo tipo, inclusive do suor do trabalhador cujo trabalho não ajuda
sua filha, mas ajuda Lula a fazer orgias no alto em luxuoso avião planando no
céu azul.
A observação da
vida nos mostra que absolutamente ninguém, individualmente, é capaz de admitir
uma situação em que duas crianças morram por abandono e que seus pais sejam
obrigados servilmente a contribuir com tratamentos sofisticadíssimos que
salvaram da morte Lula e Dilma.
A humanidade
precisa acertar o passo. Marcha em desordem tão grande que se encontra numa
situação confusa de dupla personalidade. Individualmente, ninguém deixa de condenar o sofrimento daquelas menininhas, entretanto, coletivamente, aceitam
indiferentemente aquela situação de duas crianças submetidas a uma condição
infinitamente inferior à dos cães e gatos. O comportamento humano ainda se
encontra muito ligado ao comportamento dos irracionais que apenas vivem. É
preciso incluir no processo de viver a atividade de pensar. A vida não pode ser
levada na base do simplesmente “toca prá frente” porque ninguém individualmente
toca nem prá frente e nem prá trás sem antes querer saber o que vai encontrar
lá na frente ou lá atrás. Entretanto, em conjunto, as pessoas caminham sem
saber para onde.
Se for
perguntado a cada uma das pessoas perfumadas antes de entrar na igreja, não haverá
uma sequer a concordar com o sofrimento daquelas duas menininhas. Entretanto,
quando em reunião de “irmãos”, nem se lembram de indagar qual a origem da
situação daquelas duas irmãzinhas lá longe. Só há necessidade de preocupação
quando se trata de pessoa da família. Mas, e irmãos não fazem parte de uma
família? Se assim é, e se todos são filhos de Deus, todos são irmãos. Então, as
menininhas também são. Como pode, então, irmão ignorar sofrimento de irmão? É
que a tal irmandade é pura hipocrisia. Desaparece quando se atravessa a porta
de saída da igreja do mesmo modo como desaparece a indignação com os problemas
sociais quando se desliga a televisão.
A humanidade
vive a situação aparentemente inexplicável de ser cada indivíduo obrigado a ser
do jeito que ele não quer ser. É exatamente a isso que se pode chamar de
servidão porque outra coisa não é senão servidão o fato de ter cada indivíduo
da humanidade de conviver com as coisas que ele gostaria de evitar tais como filas,
planos de saúde, descontos no extrato bancário, barulho, ser impedido de
embarcar, embora com a passagem na mão. Ninguém concorda com isso
individualmente, coletivamente, porém, todos estão de acordo e dão boas risadas
nas filas. Desse modo, quem é obrigado a proceder do jeito que não quer, é por
ser servil a alguém. Quem é servil é por ter o procedimento do servo, e servo é
aquele que vive sob alguma forma de escravidão. Portanto, quem é servil ainda
não alcançou o nível de dignidade que distingue o homem sociável das bestas
humanas.
Nestas
afirmações, nem mesmo o religioso ferrenho será capaz de encontrar desrespeito
ao seu Deus. Não se pode atribuir a elas outra intenção senão duas, mas nenhuma
contrária ao que pregam todas as religiões. A primeira intenção é incentivar o
sentimento de irmandade para todas as crianças do mundo na situação daquelas
duas menininhas infelizes. A segunda intenção é manifestar um grande desejo de
ver a humanidade ser constituída de irmãos sem aspas e sem escravidão.
No que diz
respeito a ser contrário à escravidão, embora os religiosos não aceitem que
Deus tenha aprovado a escravidão, Ele o fez. Em Êxodos, 21, Deus estabelece
regras para a escravidão. Tem até outras passagens por lá também sobre o mesmo assunto,
mas vou deixar de citar para não ficar parecendo pirraça. As menções do
endereço citado são suficientes para provar a conivência de Deus com a
escravidão. Embora ninguém individualmente concorde com essa afirmação de que
Deus é escravagista, coletivamente, porém, todos carregam a bíblia com as
regras ditadas por Deus sobre como conduzir os escravos. Embora não aceitem, por
ser a desmoralização de Deus, fazem de conta que não existe o que realmente existe. Basta abrir
a bíblia naquele lugar citado para fazer de conta que não está lá o que lá está.
Afinal, todos são obrigados a proceder do modo diferente do preferido. Fazê o
quê, né não?