sábado, 25 de fevereiro de 2017

ARENGA 383


A notícia no jornal Folha de São Paulo de que há 85 anos as mulheres conquistaram direito ao voto traz à lembrança meu tempo de menino lá na fazenda do meu pai, quando era necessário fazer algum procedimento numa rês xucra. Conduzido o animal para dentro do curral, era ele laçado. Por ser xucro, atacava o vaqueiro que mais que depressa passava para o lado de fora por entre os varões da cerca, enrolava o laço no varão, e, à medida que o animal corria e esbravejava, o vaqueiro ia puxando o laço de modo a encurtar cada vez mais o espaço disponível para o animal correr e saltitar. Desse modo, ele acabava por encostar os chifres na cerca e imobilizado. Para fazê-lo deitar a fim de marcá-lo ou colocar creolina ou benzocreol na bicheira, depois de peado (amarradas juntas as pernas), ia-se afrouxando o laço aos poucos à medida que seu corpo era puxado de lado por uma corda e, em consequência, ia caindo até ficar deitado. O lance de afrouxar o laço aos poucos é exatamente o que acontece com o povo. O momento em que o laço estava totalmente recolhido e o animal se encontrava com a cabeça encostada na cerca, impotente porque imobilizado, correspondia ao tempo em que o povo trabalhava debaixo de chibata tantas horas quisesse o empregador. Depois, passou a ter direito a trabalhar menos, depois ao voto, dos pobres, depois das mulheres, mais tarde veio o direito ao salário, a férias, décimo terceiro, aposentadoria, Bolsa Família, um faz de conta de proteção à segurança, saúde e educação. A cada uma destas conquistas correspondia a cada afrouxadinha que o vaqueiro dava no laço que sujegava o boi, de forma que assim como o boi, aos poucos, ia se vendo algo mais cômodo, também o povo através dos milênios tem conseguido alguma coisa em sua eterna busca por comodidade. Percebe-se, entretanto, que a busca do povo por comodidade limita-se exclusivamente à comodidade física. Também o boi procura sombra, comida, água e descanso. Para que o povo alcance a verdadeira comodidade faz-se necessário antes de tudo diferenciar-se do boi, fazendo uso da capacidade de pensar que ele desconhece ter, o que fica evidente pelos usos e costumes medíocre que os pais passam para os filhos, resultando na cultura que orienta comportamentos também medíocres, razão da identidade entre povo e manada.

A sociedade da juventude parva de futucadores de telefone, adoradores de igreja, axé, futebola, “famosos” e “celebridades” depois de acreditar ter chegado ao fundo do poço descobriu tratar-se de um fundo falso. A fossa a que chama de sociedade continua descendo indefinidamente, chegando à equiparação daquilo que devia ser política ao tráfico de drogas e à putaria porquanto as altas cúpulas do poder se declaram promotoras de suruba e “mula” para transportar dinheiro, processo também usado pelos traficantes para conduzir as drogas por não disporem de helicóptero e a faculdade de ficar tudo bem com o fato simplório de negar as acusações.

Diferenciando-se de manada através da capacidade de pensar, o povo descobrirá a existência de coisas infinitamente mais elevadas a se conquistar do que apenas o direito de trabalhar, descansar, comer, cagar e trepar. Descobrirá que a liberdade tão falada não depende apenas das coisas materiais. Pode-se perceber esta realidade olhando para os donos das imensas fortunas mostradas na brutalidade social da revista Forbes. Seus donos não são livres. Os medos lhes atormentam por todo lado, principalmente o medo de ficar pobre ou ser preso em virtude das falcatruas inerentes à formação das grandes fortunas. Liberdade mesmo é não precisar ter medo de nada. Nem passar pela cabeça a possibilidade de ficar sem as coisas das quais depende uma boa qualidade de vida. Como se vê, tais coisas não dependem só de riqueza porque tanto os ricos como os pobres bebem água com bosta, comem comida com veneno, respiram ar empesteado e correm o risco de nem isso terem mais. Inté.

  

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